sábado, setembro 01, 2007

VOLTAR DE FÉRIAS - VISÃO 1

"Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou -
Sei que não vou por aí!"
(José Régio)
Voltei daqui, duma terra cheia de
****** Pessoas assim ******
****** Comércio assim ******
****** Constrastes assim ******
Donde voltei eu? Apetece-me dizer:
"Não sei donde vim,
Não sei por onde vim -
Mas não me parece que tenha vindo de onde para onde fui".
(continua)

segunda-feira, abril 03, 2006

Nicola

Há uns tempos tive uma daquelas experiências sublimes. Sublimes porque temos a certeza que dela nos recordaremos eternamente com uma afeição muito especial.
Tratou-se disto: iniciar na informática uma turma de gente reformada. Pessoas com cinquenta, sessenta, setenta anos. Ou mais. Não, não consigo resistir a fazer uma pequena inconfidência, que foi uma delícia enorme para mim, quer pelo seu sentido humano, quer por ser um recorde absoluto para mim e que eu não julgo possível bater: o veterano da turma tinha 95 anos!!! Caminhava apoiado nas suas duas canadianas e saía sempre da aula antes dela acabar ... porque tinha de ir para outra disciplina (Psicologia, creio eu)!
Tinha um apelido sintomático, Nicola, e dizia-se descendente do dono do Café Nicola, de Setúbal, frequentado pelo poeta Bocage. Contou-me o senhor Nicola, cheio de orgulho na história do seu nome, que uma noite, Bocage, ao sair do Café, foi abordado por um militar Francês, que por cá andava entretido a invadir-nos, que lhe perguntou: "Quem és? Donde vens? Para onde vais?", ao que Bocage respondeu de pronto: "Chamo-me Bocage / E venho do Nicola / E vou para o outro mundo / Se disparas a pistola". Este episódio, verídico, encontrei-o, mais tarde, retratado aqui.
Este homem, e os seus colegas de turma, chegaram-me às mãos vindos directamente daquele "passado ainda presente" de que falei num post anterior. Eram pessoas daquelas para quem mandar uma carta é quase ainda pedir a alguém que a escreva. Eram pessoas daquelas para quem uma carta se deita no correio e demora uns bons dias a chegar ao destino.
Para estas pessoas que sentido tem o correio electrónico? Como explicar-lhes os principais conceitos? Lá que funciona, funciona, mas o que é que se consegue entender para além do próprio mistério de aquilo funcionar mesmo? Dá lá para acreditar que um mail atravessa o mundo enquanto o Diabo esfrega um olho! É lá possível que o mail siga sem precisar dum selo ou dum carimbo! E depois "eu mando um mail, mas ... e se não estiver ninguém em casa para o receber?". "E só mais uma questão: tenho de vir sempre este computador ler o meu mail? Não? Pode ser noutro qualquer? Mas como é que ele sabe aonde é que eu estou?".
É gente dum saber de vida imenso e que não se verga à ignorância tecnológica: pergunta a mesma coisa uma, duas, vezes sem conta. Como prémio, de quando em vez lá desfrutam da possibilidade de vingança do seu passado sobre o meu presente: um mail volta para trás, "destinatário desconhecido", "caixa de correio cheia"!!! Ah: cá está, "bem me parecia, isto pode ser tudo muito bom, tudo muito bonito, mas falha muitas vezes"! A verdade é que "se fosse em correio normal o carteiro não devolvia a carta assim tão facilmente"; "caixa cheia?" - o carteiro haveria de a colocar debaixo da porta; "destinatário desconhecido?" o carteiro perguntaria aos vizinhos por ele. Ah! Técnicas malucas, "no meu tempo as cartas não voltavam assim para trás"...
Bocage faleceu a 21 de Dezembro de 1805! O Senhor Nicola carregava consigo memórias pesando 200 anos. Histórias de família com 200 anos!!! E saía das aulas de informática cedo para ir para Psicologia! Esta geração de gente idosa, que a nossa sociedade insiste em atirar para um canto, tem muito para aprender mas teria muito para ensinar. Que pena tanto desperdício de tanto saber, de tanta energia, de tanta história e de tanta humanidade. Tudo assim: a amarelecer em lares, em hospitais, em casas vazias, em bancos de jardim...

quinta-feira, janeiro 05, 2006

A TRADIÇÃO JÁ NÃO É O QUE ERA

O Bolo Rei já não é comido só no Dia dos Reis:
é comido antes, durante e depois desse dia.
Talvez por isso,
A tradição já não é o que era:
A Fava,
símbolo de coisa dura de mastigar e de engolir,
saiu a muita gente mesmo antes do Dia dos Reis;
A Fava,
símbolo do sítio a que se mandam alguns, para penarem,
vai continuar a sair a outros, mesmo depois do dia dos Reis;
A tradição já não é o que era.
Continua a haver "Reis" - mas já não são Magos.
E antigamente havia um só Dia dos Reis:
mas agora os "Reis" têm muitos dias só para eles.
A tradição já não é o que era:
Antigamente os Reis eram glorificados.
Agora não...

quarta-feira, janeiro 04, 2006

MUNDO SUBMERSO

(Vilarinho das Furnas, Dez/2005)

Por baixo destas águas mora uma aldeia.
Por baixo de cada corpo mora uma pessoa.
O que é que se esconde para lá da superfície?

domingo, janeiro 01, 2006

GRANITOS

(Gerês, Dez/2005)

É tempo de pôr o relógio a andar, de partir deste tempo parado e de regressar a uma vida com ritmo ADSL.

Dedico um último olhar de despedida à paisagem que me rodeia. E ela devolve-me o cumprimento de forma cruel, sugerindo-me a pilha de documentos (manuais, livros, artigos, trabalhos, relatórios, actas, propostas, etc) que esperam, também imóveis e igualmente parados - em cima da minha secretária - que eu lhes dedique um olhar tão atento, deslumbrado e demorado como aquele com que contemplo cada um destes inúmeros blocos de granito.

Acho que já parto com saudades dum modem a 28KB...

sábado, dezembro 31, 2005

O PASSADO AINDA PRESENTE

Escrevia há uns dias: "Voltar a depender de um modem a 28.8KB é como pôr o pé no travão e regressar a uma velocidade de vida mais reduzida. É voltar a sentir as sensações dum mundo antigo, dum passado perdido, é como que um retorno ao Portugal rural de há muitas décadas...".
E eis que, subitamente, numa curva da estrada, esse passado me surge pela frente: o carro abranda e segue em marcha lenta, acompanhando os Garranos selvagens do Gerês que avançam a uma velocidade equivalente a 28KB.

É o regresso a um passado que afinal ainda existe. E , por incrível que pareça, o mundo é genialmente lindo visto e sentido a esta velocidade. Até parece perfeito!
Porque nos tornámos nós, Homens, tão exigentes?

terça-feira, dezembro 27, 2005

SÍNDROMA DE ABSTINÊNCIA

A vida é tão diferente quando se depende de um modem a 28.8 KB!
Sim, isso ainda existe, é arcaico, mas existe, pelo menos aqui no sítio para onde vim passar o Natal...

Recuar de uma ligação ADSL para um modem destes, é como regressar a um tempo de que já nos esquecemos, áquele outro tempo em que não havia nem fotocópias, nem televisão, nem telemóveis, nem aquecimento central, nem Centros Comerciais, nem ecografias e TACs, nem máquinas de calcular, nem antibióticos, nem multibanco, nem máquinas automáticas para vender coisas, nem MP3, ... nem... nem...
Sim, nós já fomos capazes de viver dessa maneira. Mas conseguimos hoje conceber a vida sem essas "modormias"? Tudo isso surgiu há tão pouco tempo mas parece que já foi há tanto... O tempo, já o diziamos, passa depressa, mas a tecnologia parece que o faz passar ainda mais depressa!
Voltar a depender de um modem a 28.8KB é como pôr o pé no travão e regressar a uma velocidade de vida mais reduzida. É voltar a sentir as sensações dum mundo antigo, dum passado perdido, é como que um retorno ao Portugal rural de há muitas décadas, ao andar sobre estradas romanas dentro duma carroça puxada por bois, às viagens de camionete Porto-Bragança que demoravam 7 horas (quando as coisas corriam bem...), às chamadas telefónicas que "caíam" sucessivas vezes, ao precisar de dinheiro num sábado e o banco só abrir na segunda, etc, etc, etc. Ah! E aos serões de familiares, que aconteciam por falta de televisão, de consolas de jogos, de Centros Comerciais e coisas que tais.

E face a essa experiência, percebo melhor como a tecnologia nos transforma enquanto seres humanos, por exemplo criando-nos novas dependências (a urgência de tudo, a pressa em tudo) que transportamos connosco para os outros lados da nossa vida. E que conflitos isso depois nos traz...
Que raiva pareço sentir ao assistir à eternidade com que estes bits demoram a sair e a entrar no meu PC. Só me apetece dar uns Xutos & Pontapés no modem e pôr-me a cantar:

As saudades que eu já tenho
Da minha alegre casinha
Tão modesta quanto eu.
Meu Deus como é bom morar
Num modesto primeiro andar
com ligação de Banda Larga à Internet.

Ah! Que saudades da minha casa em Santarém...

sexta-feira, dezembro 23, 2005

NATAL

Dizem que estamos na época do Natal, como se houvesse uma época própria para o Natal. NATAL é NATALidade, é nascimento. É o nascimento de uma nova vida que se torna importante para os outros.
Que cada um de nós faça deste Natal um Natal de si próprio, sentindo-o como o nascimento de uma nova vida dentro de si mesmo e que essa nova vida o ajude a transformar-se numa pessoa nova.
Uma pessoa nova, cheia de vontade de encontrar novas aventuras, novas coragens, novas amizades, novos amores, novas energias, novas fronteiras, novas pontes para os outros.
Uma pessoa nova, cheia de vontade de encarar as suas limitações (aceitando-as ou ultrapassando-as) e de reforçar os lados positivos da sua existência, reaprendendo a reconhecer e a valorizar a beleza das coisas com que se cruza ao longo do seu trajecto de vida.
Uma pessoa nova, cheia de vontade de ser uma nova pessoa, uma pessoa melhor, com um sentido mais apurado de humanidade: de respeito pelo outros, de entendimento dos outros e com os outros, enfim, de partilha com os outros.
Não é garantido, mas com pessoas melhores há mais hipóteses de o mundo também ser melhor. Eu vou tentar que haja um Natal dentro de mim. E desejo, sinceramente, que haja um Bom Natal dentro de cada um de vós.
E desejo também que, ao longo do próximo ano, todos nós saibamos fazer, todos os dias, um Natal dentro de nós. Uma vida que não se renova constantemente, não é vida: é morte.
Viva o Natal!

sexta-feira, dezembro 09, 2005

ATÉ ONDE "IRÃO" ELES ?

Lá nos saíram: México, Angola e Irão. Fácil? Difícil? Às vezes somos nós que fazemos as coisas serem fáceis ou difíceis.

Dei comigo a lembrar-me do mundial de há 20 anos, 1986 - no México. Lá estava na baliza o grande Bento. A meio campo, os grandes Carlos Manuel e Jaime Pacheco. E tantos outros monstros sagrados. Chegaram lá depois de uma espantosa (hoje já não espantaria) vitória, na Alemanha, contra a poderosa equipa da casa. Perceba-se isto: foi um escândalo mundial!

O seleccionador de então - José Torres (um dos Magriços do mundial de 1966), celebrizou uma frase, antes daquele derradeiro e decisivo jogo para o nosso apuramento: - "Deixem-nos sonhar". E o sonho tornou-se realidade, mostrando o quanto é importante atrevermo-nos a sonhar na vida. "O optimismo constrói-se", como diz a Mª José Costa Félix...

O país preparou-se para a festa, não com bandeiras - como no Europeu de 2004, mas com uma música que ficou célebre, que todo o país cantava e que mais em baixo recordo. Foi uma euforia completa.

E tudo começou bem: 1-0 a uma das selecções favoritas, a Inglaterra. Depois seguiram-se várias coisas: o deslumbramento de uma equipa pouco habituada ao sucesso; também, parece que umas revoltas e greves dos jogadores, não sei bem o que se passou. Sei o que se seguiu: perdemos 1-0 com a Polónia e 3-1 com Marrocos. Ficámos em último no grupo, voltámos cedo para casa, humilhados de todo: fizemos o mais difícil e cedemos no teoricamente mais fácil. Uma imagem retratou bem o fiasco: o Bento a chegar de muletas e de perna partida...

Agora de novo o México. E Angola. E o Irão. Até onde "IRÃO" eles? Aprendam com a história, mas deixem-os sonhar, deixem-nos sonhar.

F-O-R-Ç-A P-O-R-T-U-G-A-L !
______________________

Vamos Lá Cambada - Hino do Mundial de 1986
Letra e música: Carlos Paião; Interpretação: José Estebes (Herman José).

Heróica e lusitana gente vamos em frente mas combictamente.

Vá lá cambada infantes desportistas, homens de conquistas, povo que és o meu
Bola redonda e onze jogadores em frente sem temores que as tácticas dou eu
Tragam as gaitas, as bandeiras e a pomada, vamos dar-lhes uma abada, ensinar-lhes o que é bom
Vamos mostrar a esses carafunchosos, por momentos gloriosos, quem é a nossa selecção.

Bamos lá cambada, todos à molhada, que isto é futebol total.
Deixem-se de tretas, força nas canetas, que o maior é Portugal.

É atacar agora e defender para fora, uns são toscos e nem dão para a aquecer
Suar a camisola e até jogar sem bola e disfarçar para o árbitro não ver
No intervalo, solteiros contra casados, fandangos, chulas e fados para aprenderem como é durante o jogo,
Qualquer caso lá surgido só pode ser resolvido à cabeçada e ao pontapé.

Bamos lá cambada, todos à molhada, que isto é futebol total.
Deixem-se de tretas, força nas canetas, que o maior é Portugal.

Os portugueses já provaram muitas vezes saber ser uns bons fregueses das grandes ocasiões
Nesta jornada, nem que seja à pantufada, nós estaremos na bancada muito mais de dez milhões.

Força Portugueses!
Viva Portugal, Portugal, Portugal
Viva Portugal, Portugal, Portugal...

Bamos lá cambada, todos à molhada, que isto é futebol total.
Deixem-se de tretas, força nas canetas, que o maior é Portugal.

Bamos lá cambada, todos à molhada que isto é efectibamente futebol total
Temos de ter muita coragem, muita força, pensem nos vossos antepassados có nada, muito orgulho, muita vivacidade
E vai... e um, dois, e um, dois...
E vai lá... e cruza... e é golo, e é GOLOOOOOO !

Bamos lá cambada, todos à molhada, que isto é futebol total.
Deixem-se de tretas, força nas canetas, que o maior é Portugal.

terça-feira, dezembro 06, 2005

PRECE

Não sei se Deus, na sua imensa sabedoria, tem a sabedoria suficiente para nos dar a sabedoria de que, às vezes, tanto precisamos! É que há tantos que querem, à viva força, ser os chefes (ou seja, os donos) da nossa vida, que às vezes falta-nos sabedoria para enfrentar a sua ignorância... E sabemos bem: quando a sabedoria e a ignorância se enfrentam, nem sempre ganha a sabedoria... (imagem retirada daqui)

quarta-feira, novembro 23, 2005

CRIANÇAS ABUSADAS

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

(in BALADA DA NEVE, Augusto Gil)

E o repórter, Nick Ut, da Associated Press, estava lá!

Era o momento certo, dum dia completamente errado, para fotografar as crianças que fugiam, apavoradas, duma aldeia destruída com a cruel ajuda de Napalm.

Crianças que corriam, não sabiam muito bem para onde. Corriam. E Nick Ut, apropriando-se, de forma absolutamente nua e crua, do seu horror, foi à boleia da corrida delas e correu, ele próprio, para a fama dos prémios Pulitzer. Esta foi a foto da sua vida!
E as crianças felizes de todo o mundo, que foram à escola nesse dia, nem se aperceberam de que, a uma certa hora do dia, as suas pastas ficaram ligeiramente mais leves: foi quando se apagou, dos seus mapa-mundi, aquele pequeno pontinho preto que representava Trang Bang, lá longe, no Vietname. E algumas das que se aperceberam disso, por certo terão pensado: “que bom, menos matéria que sai para o teste, menos um nome de terras para decorar”. Há gente para tudo!
Mas há também aqueles que fazem suas as causas das crianças que não podem ter causas. Voltarei ao tema em breve para escrever sobre isso.

quinta-feira, novembro 17, 2005

COMPREENDER QUEM GRITA

Ninguém gosta que lhe falem aos gritos. Eu não gosto que me falem aos gritos.
Ok. Eu sei que às vezes também me passo. Mas, mesmo assim, não gosto que gritem comigo. Prontos, eu sou assim…
Procuro ter tolerância e compreensão para quem grita comigo. Ok, sei que nem sempre o consigo, mas tento. E para o conseguir preciso de me lembrar, a tempo, que quem grita com os outros, está, antes de tudo, a gritar consigo próprio, está a gritar contra a sua incapacidade de enfrentar algo que o incomoda. Não é comigo que grita.
Quem está bem consigo próprio encara os desaires da vida com um outro sustento que não é o que revela quando grita, quando dá murros na mesa, quando é desagradável com os outros...
Imagine-se uma reunião. Todos colaboram, dando o melhor de si mesmos. Mas eis que surgem opiniões divergentes e o director entra numa espiral de gritaria com alguns dos presentes. Restringe, proíbe, impõe, exige... Vai-se a harmonia do grupo. O director deixa de conseguir estabelecer a ponte entre as legítimas várias vontades dos outros. O director grita porque não sabe nem gerir nem enfrentar a desorganização interior do grupo. No fundo, também grita contra a sua incapacidade para lidar com o caos instalado.
O mesmo se passa com as pessoas que gritam. Gritam porque não conseguem organizar devidamente a desorganização que há dentro de si. A pessoa que grita funciona como se tivesse várias pessoas a discutir dentro dela: por fora é a imagem do seu caos interior.
Vem isto a propósito do que me aconteceu há uns dias. Fiz um telefonema a um ex-aluno, ao Carlos C., um daqueles alunos que ficaram amigos para a minha vida. Mas esperava-me uma valentíssima surpresa: do outro lado, alguém grita comigo, berra de forma absolutamente inimaginável. Foi mesmo incrível: eram gritos tão agudos que partiriam qualquer peça de Cristal da Bohémia.
Eu sabia que não estava a telefonar para ouvir aquilo. Mas, contudo, enchi-me de uma grande compaixão por aqueles gritos. Acendeu-se a tempo, em mim, uma luzinha de vela que me recomendou cuidado, lembrando: "grita quem é fraco; grita quem não confia nas suas próprias capacidades; grita quem tem medo do mundo e dos outros; quem grita, grita, antes de mais, por ajuda".
Pois bem: ali estava alguém que me mostrava tudo isso. Escutei-lhe os gritos, em silêncio. Controlei-me, repetindo: "quem grita, grita, antes de mais, por ajuda". E pensei, de forma urgente, para comigo: "Precisa de apoio. Como posso fazer-lhe chegar a minha ajuda? Que posso fazer eu para ajudar quem grita assim?". Só me ocorreu dizer: - "Parabéns, Carlos, a Marta deve ser linda!".
Pois foi: de dentro dos seus menos de 3 Kg, do alto do seu menos que meio metro, a Martinha, nascida no dia anterior, revelava um medo imenso de enfrentar o mundo: a luz do dia, os ruídos do hospital, o choro dos outros meninos, os passos das enfermeiras, as falas dos médicos, as mudanças das fraldas, a necessidade de respirar, a necessidade de comer, ....
A Martinha gritava, no meu telefone, implorando ajuda. Que mais poderia fazer eu para ajudá-la a ultrapassar os seus medos? Desligar depressa, para que ela pudesse voltar para um colo tranquilo de pai, mesmo que não perdoando àquele tipo, de voz grossa, que lhe viera estragar o dia.
Eu sei que fui um malvado para a Marta e que ela jamais me perdoará o susto da campainha do telefone. Mas vale sempre a pena tentar compreender os que gritam, mesmo que continuemos a ser mal vistos por eles...

Parabéns, Marta. Sê bem vinda a este mundo.

terça-feira, novembro 08, 2005

AFINAL HAVIA OUTRA !

Olá, Z.C.

Hoje aconteceu-lhe aquela cena de ouvir alguém que julgou ser um homem e que afinal era uma mulher…Rimos do caricato da situação e eu prometi-lhe dois ou três comentários extra. Aqui vão eles, sem que tenha de pagar mais por isso – estão incluídos no preço das propinas! Como vê, as minhas promoções são melhores do que as do Modelo e nem exigem talão!


Pois é, Z.C., sabe o que são estereótipos? Diz o meu dicionário: “opinião preconcebida e comum que se impõe aos membros de uma colectividade”. Admitamos como boa esta definição…

No seu caso, deduziu tratar-se de um homem porque a sua ideia preconcebida de homem/mulher assim o levou a fazer. Até disse uma coisa deste género: “parecia mesmo um homem, as mulheres não fazem aquilo”. Mas aquilo que você imaginou à luz dos seus estereótipos de homem/mulher levou-o a interpretar mal a realidade que lhe apareceu pela frente. Afinal havia outra (pessoa): era mesmo uma mulher, não era um homem!

Mas não fique traumatizado. Nem é caso para andar por aí cheio de medo de voltar a “trocar as coisas” (i.e., trocar mulher por homem) em momentos porventura ainda mais complicados! De facto, todos nós somos dominados, mais ou menos, por estereótipos… o que às vezes nos trama, criando situações muito complicadas mas recordadas com algum divertimento.
Olhe, há tempos, num quentíssimo dia de verão, numa esplanada à beira-mar, ofereceram-me um Irish Coffe: aceitei sem pensar muito bem no que estava a aceitar. Mas pouco depois o meu estereótipo de bebida de verão (bebida fresca, gelada, que mata a sede…) levou-me a um terrível engano: levei o copo à boca e bebi um grande gole, como se fosse de cerveja, e apanhei um terrível escaldão: aquela bebida estava a ferver!!! Malditos estereótipos...

Mas o seu caso pode indiciar outra coisa: a necessidade de um upgrade dos estereótipos que você emprega para homem e mulher, pois a realidade dos dias que correm parece ser muito diferente daquela que à primeira vista se vê. Correndo o risco de o Domingos Abecasis voltar cá para me dizer que “o copy/paste estraga a obra realizada pelo autor”, deixo aqui mais uma citação, de um polémico livro que anda por aí:

“(…) enfrentamos uma crise de vastas proporções na identidade masculina. Cada vez mais, os observadores do panorama contemporâneo – sociólogos, antropólogos e psicólogos que fazem estudos aprofundados – estão a descobrir as esmagadoras dimensões deste fenómeno, que afecta cada um de nós pessoalmente tanto quanto afecta a nossa sociedade como um todo. Porque é que hoje em dia há uma confusão tão grande em termos de sexos, pelo menos nos Estados Unidos e na Europa Ocidental? Parece ser cada vez mais difícil referirmo-nos a alguma coisa como tendo uma essência masculina ou feminina”.

Ou seja, aqui já se fala da essência das pessoas (elas próprias) e não do mero estereótipo (com que nós as observamos)!

Tenha pois cuidado, Z.C.: ele há por aí telefones que já não são de quem parecem ser!


domingo, novembro 06, 2005

Nº 3183

Eis-me, algures, neste lindíssimo lugar, com uma elegância e uma imponência verdadeiramente excepcionais. Trata-se duma Universidade, a de Évora, onde as salas de aulas se amontoam ao longo duns claustros fabulosos e as paredes são forradas com uns magníficos azulejos que lhes conferem uma distintíssima dignidade.
Eis-me, algures, a vaguear pelo pátio e pelos corredores deste edifício antiquíssimo, sentindo como minhas as palavras do escritor Virgílio Ferreira, que sobre Évora dizia: “Conheço os seus espectros, a vertigem das eras, (…), nas pedras cor do tempo ouço um atropelo de vozes seculares”. É mesmo isso que sinto ao vaguear por aqui… E emociona-me particularmente sentir, neste edifício, essa noção da antiguidade de Évora, pois foi neste edifício que o meu pai frequentou o liceu, nos anos 30 do século passado, e onde, curiosamente, teve o privilégio de ser aluno do mesmo Virgílio Ferreira!
Sinto história neste local e tento imaginar como seriam, nessa altura, as brincadeiras naquele recreio, como seriam as aulas dentro daquelas salas. Mas não consigo. As coisas mudam, escapando à nossa capacidade de entendimento: imaginam, hoje em dia, um liceu público só para rapazes? Que tédio…
Volto a mim. Evaporou-se o estatuto que tenho na minha escola: aqui, os que passam, sabem lá se sou engenheiro, sabem lá se sou professor… Na minha escola todos me (re)conhecem, mas aqui está-me reservado o estatuto que se dá à gente anónima. Isso é bom ou é mau? Nem uma coisa nem outra: é diferente. E a diferença sente-se sempre, mexe connosco, intimida-nos mas desafia-nos.
Algures, por ali, na sala 106, marco presença numa aula. Mas não estou de pé, como me habituei nos últimos tempos: agora estou sentado, eventualmente com uma expressão típica de aluno caloiro; não dou a aula: assisto a ela; não escrevo o sumário: assino a folha de presenças; não recebo ordenado: pago propinas; não tenho cartão de professor: tenho cartão de aluno – sou o nº 3183.
A aula avança e eu vou-me lembrando do que o meu filho Vasco me disse, quando soube que eu iria frequentar um programa de doutoramento na Universidade de Évora: “O quê, vais voltar a estudar? Agora é que te vais lembrar do que custa ser aluno…”. Cá estou para ver isso. Para já, vou sentindo como a cadeira onde me sento é insuportavelmente desconfortável; como custa manter a concentração e o interesse numa aula de 4 horas; como a sala é fria; como é embaraçoso olhar à volta e não ver caras conhecidas; como é estranho estar numa cidade que não é a nossa… E dou comigo a pensar que os meus alunos também devem ter destes e doutros problemas, sem que nós, professores, eventualmente os valorizemos da maneira devida. Nisso tens razão, Vasco!
Mas a minha filha Rita, quando soube que eu iria frequentar aquele programa de doutoramento, reagiu de forma completamente diferente: deu-me os parabéns e incentivou-me, lembrando-me o quanto “é bom estudar e aprender coisas novas”. E, quando a cadeira me fazia doer as costas, ou quando a concentração me falhava, ou quando o frio da sala se tornava mais intenso, ou quando eu pensava na cidade e nas caras estranhas que me rodeavam, eram as palavras dela que me vinham à memória: ao fim e ao cabo, tudo isso era um preço razoável a pagar para ter o privilégio de pertencer àquela elite de alunos doutorandos, para poder ter acesso a um curso de formação avançada tão interessante como este promete ser. E, também aqui, dei comigo a pensar em alguns dos meus alunos que, por vezes, parecem não perceber que é um verdadeiro privilégio ser-se aluno do ensino superior num país com falta de recursos e abundância de iletrados. E que esse privilégio deve ser retribuído com grande dedicação e esforço pessoal na realização dos cursos. Nisso tens razão, Rita!
E, tal como os meus alunos, também eu olho para a difícil missão que tenho pela frente: vários anos de um esforço imenso, diz, quem sabe, que é mesmo um esforço brutal. Ainda por cima com os filhos à perna (“Quando é que tens testes?”; “Já estudaste tudo?”; “Vai trabalhar” – ai, como eles se vingam do que eu lhes faço!). Ainda por cima com o embaraço de sentir que ambos têm razão: é difícil a condição de aluno, como diz o Vasco, mas é óptimo estudar, como diz a Rita!
E, para além de tudo isto, também a mim me assaltam as dúvidas: serei eu capaz de fazer este curso e ser pai e ser marido e ser filho e ser irmão e ser professor e ser amigo dos amigos e ter tempo para mim e ter tempo para os outros e…e … e…? Serei capaz de vencer este desafio conciliando-o com tudo o resto? Serei eu capaz?
É o momento certo para lembrar o que escrevi em posts anteriores: que “O Optimismo constrói-se” e que “O primeiro passo para obter uma determinada coisa é acreditar que vamos consegui-la”. Se serei capaz? Se é essa a opinião que dou aos outros, só posso achar que sim, não é? Conto comigo e com os outros: “a vitória é difícil mas é nossa”!

O OPTIMISMO CONSTRÓI-SE

"Ninguém nos pode explicar qual o sentido que a vida tem. Cada um, porém, poderá descobri-lo - ao assumir a sua própria faculdade para interpretar aquilo que lhe acontece. Os vários sinais que lhe vão sendo dados, através de acontecimentos exteriores ou apelos interiores.
Não podemos mudar as circunstâncias da vida. Mas podemos, sempre, mudar a forma como as encaramos. Libertar-nos de problemas sem solução à vista que nos abafam. De preocupações e ocupações que nos tiram a alegria de viver. (...)
O primeiro passo para obter uma determinada coisa é acreditar que vamos consegui-la. E acreditar não é uma capacidade que a uns seja dada enquanto a outros é negada. (...) "

(in "vamos falar de Amor?", de Mª José Costa Félix)

MEDOS INCONSCIENTES QUE NOS CONTROLAM

"Frequentemente somos controlados por medos de que nem temos consciência. E só tornando-nos conscientes deles poderemos ir tendo a coragem necessária para enfrentar os desafios da vida.
Alimentar pensamentos do tipo 'nunca vou conseguir aquilo que pretendo' ou 'gostava de ser capaz de fazer o que tu fazes, mas é impossível', sempre nos é prejudicial.
Ao nos baixar a auto-estima, diminui-nos as defesas.
E ficamos atreitos a encontrar pessoas que, estando mal com elas próprias e com o mundo, a ninguém nem a nada se entregam, por medo de perder o único poder que têm: o de controlar.
Tudo parte de uma atitude interior em relação à vida: acredito ou não que aquilo que me acontece tem uma razão de ser que transcende o meu desejo, a minha necessidade de controlar, de ficar por cima, de chegar primeiro, de cumprir, de ser competente, de vencer?
Se, para lá do que pensamos ou dizemos, no fundo de nós mesmos valorizamos mais o poder do que o amor, aquilo que preside a tudo o que fazemos é o medo. Basicamente o medo de falhar, de não corresponder às expectativas dos outros, e de nós próprios sobre o nosso desempenho, de perder, de ficar para trás, de não ser devidamente reconhecido."

(in "vamos falar de Amor?", de Mª José Costa Félix)