quinta-feira, novembro 17, 2005

COMPREENDER QUEM GRITA

Ninguém gosta que lhe falem aos gritos. Eu não gosto que me falem aos gritos.
Ok. Eu sei que às vezes também me passo. Mas, mesmo assim, não gosto que gritem comigo. Prontos, eu sou assim…
Procuro ter tolerância e compreensão para quem grita comigo. Ok, sei que nem sempre o consigo, mas tento. E para o conseguir preciso de me lembrar, a tempo, que quem grita com os outros, está, antes de tudo, a gritar consigo próprio, está a gritar contra a sua incapacidade de enfrentar algo que o incomoda. Não é comigo que grita.
Quem está bem consigo próprio encara os desaires da vida com um outro sustento que não é o que revela quando grita, quando dá murros na mesa, quando é desagradável com os outros...
Imagine-se uma reunião. Todos colaboram, dando o melhor de si mesmos. Mas eis que surgem opiniões divergentes e o director entra numa espiral de gritaria com alguns dos presentes. Restringe, proíbe, impõe, exige... Vai-se a harmonia do grupo. O director deixa de conseguir estabelecer a ponte entre as legítimas várias vontades dos outros. O director grita porque não sabe nem gerir nem enfrentar a desorganização interior do grupo. No fundo, também grita contra a sua incapacidade para lidar com o caos instalado.
O mesmo se passa com as pessoas que gritam. Gritam porque não conseguem organizar devidamente a desorganização que há dentro de si. A pessoa que grita funciona como se tivesse várias pessoas a discutir dentro dela: por fora é a imagem do seu caos interior.
Vem isto a propósito do que me aconteceu há uns dias. Fiz um telefonema a um ex-aluno, ao Carlos C., um daqueles alunos que ficaram amigos para a minha vida. Mas esperava-me uma valentíssima surpresa: do outro lado, alguém grita comigo, berra de forma absolutamente inimaginável. Foi mesmo incrível: eram gritos tão agudos que partiriam qualquer peça de Cristal da Bohémia.
Eu sabia que não estava a telefonar para ouvir aquilo. Mas, contudo, enchi-me de uma grande compaixão por aqueles gritos. Acendeu-se a tempo, em mim, uma luzinha de vela que me recomendou cuidado, lembrando: "grita quem é fraco; grita quem não confia nas suas próprias capacidades; grita quem tem medo do mundo e dos outros; quem grita, grita, antes de mais, por ajuda".
Pois bem: ali estava alguém que me mostrava tudo isso. Escutei-lhe os gritos, em silêncio. Controlei-me, repetindo: "quem grita, grita, antes de mais, por ajuda". E pensei, de forma urgente, para comigo: "Precisa de apoio. Como posso fazer-lhe chegar a minha ajuda? Que posso fazer eu para ajudar quem grita assim?". Só me ocorreu dizer: - "Parabéns, Carlos, a Marta deve ser linda!".
Pois foi: de dentro dos seus menos de 3 Kg, do alto do seu menos que meio metro, a Martinha, nascida no dia anterior, revelava um medo imenso de enfrentar o mundo: a luz do dia, os ruídos do hospital, o choro dos outros meninos, os passos das enfermeiras, as falas dos médicos, as mudanças das fraldas, a necessidade de respirar, a necessidade de comer, ....
A Martinha gritava, no meu telefone, implorando ajuda. Que mais poderia fazer eu para ajudá-la a ultrapassar os seus medos? Desligar depressa, para que ela pudesse voltar para um colo tranquilo de pai, mesmo que não perdoando àquele tipo, de voz grossa, que lhe viera estragar o dia.
Eu sei que fui um malvado para a Marta e que ela jamais me perdoará o susto da campainha do telefone. Mas vale sempre a pena tentar compreender os que gritam, mesmo que continuemos a ser mal vistos por eles...

Parabéns, Marta. Sê bem vinda a este mundo.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Pois é, já passaram 7 semanas e parece que foi ontem.

Gritar continua a ser a melhor forma da Martinha expressar os seus sentimentos. Grita porque está contente, grita porque está triste, grita porque tem fome, grita porque quer o carinho do pai e da mãe.

Os dias parecem noites e as noites parecem dias, parece que está tudo trocado. ( Mas melhores dias virão, esperamos... ;) )

Contudo as 24 horas que tem um dia agora parecem-nos 12 horas, fraldas, fraldas e mais fraldas.

A vontade de estar em casa nunca foi tão forte, o cuidar de quem mais precisa e quem muito amamos é agora a nossa prioridade.

Este Natal foi certamente o mais especial de todos, o presente chegou mais cedo, mas foi o mais desejado.

Obrigado por tudo.

Carlos C.

11:18 da tarde  

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