segunda-feira, abril 03, 2006

Nicola

Há uns tempos tive uma daquelas experiências sublimes. Sublimes porque temos a certeza que dela nos recordaremos eternamente com uma afeição muito especial.
Tratou-se disto: iniciar na informática uma turma de gente reformada. Pessoas com cinquenta, sessenta, setenta anos. Ou mais. Não, não consigo resistir a fazer uma pequena inconfidência, que foi uma delícia enorme para mim, quer pelo seu sentido humano, quer por ser um recorde absoluto para mim e que eu não julgo possível bater: o veterano da turma tinha 95 anos!!! Caminhava apoiado nas suas duas canadianas e saía sempre da aula antes dela acabar ... porque tinha de ir para outra disciplina (Psicologia, creio eu)!
Tinha um apelido sintomático, Nicola, e dizia-se descendente do dono do Café Nicola, de Setúbal, frequentado pelo poeta Bocage. Contou-me o senhor Nicola, cheio de orgulho na história do seu nome, que uma noite, Bocage, ao sair do Café, foi abordado por um militar Francês, que por cá andava entretido a invadir-nos, que lhe perguntou: "Quem és? Donde vens? Para onde vais?", ao que Bocage respondeu de pronto: "Chamo-me Bocage / E venho do Nicola / E vou para o outro mundo / Se disparas a pistola". Este episódio, verídico, encontrei-o, mais tarde, retratado aqui.
Este homem, e os seus colegas de turma, chegaram-me às mãos vindos directamente daquele "passado ainda presente" de que falei num post anterior. Eram pessoas daquelas para quem mandar uma carta é quase ainda pedir a alguém que a escreva. Eram pessoas daquelas para quem uma carta se deita no correio e demora uns bons dias a chegar ao destino.
Para estas pessoas que sentido tem o correio electrónico? Como explicar-lhes os principais conceitos? Lá que funciona, funciona, mas o que é que se consegue entender para além do próprio mistério de aquilo funcionar mesmo? Dá lá para acreditar que um mail atravessa o mundo enquanto o Diabo esfrega um olho! É lá possível que o mail siga sem precisar dum selo ou dum carimbo! E depois "eu mando um mail, mas ... e se não estiver ninguém em casa para o receber?". "E só mais uma questão: tenho de vir sempre este computador ler o meu mail? Não? Pode ser noutro qualquer? Mas como é que ele sabe aonde é que eu estou?".
É gente dum saber de vida imenso e que não se verga à ignorância tecnológica: pergunta a mesma coisa uma, duas, vezes sem conta. Como prémio, de quando em vez lá desfrutam da possibilidade de vingança do seu passado sobre o meu presente: um mail volta para trás, "destinatário desconhecido", "caixa de correio cheia"!!! Ah: cá está, "bem me parecia, isto pode ser tudo muito bom, tudo muito bonito, mas falha muitas vezes"! A verdade é que "se fosse em correio normal o carteiro não devolvia a carta assim tão facilmente"; "caixa cheia?" - o carteiro haveria de a colocar debaixo da porta; "destinatário desconhecido?" o carteiro perguntaria aos vizinhos por ele. Ah! Técnicas malucas, "no meu tempo as cartas não voltavam assim para trás"...
Bocage faleceu a 21 de Dezembro de 1805! O Senhor Nicola carregava consigo memórias pesando 200 anos. Histórias de família com 200 anos!!! E saía das aulas de informática cedo para ir para Psicologia! Esta geração de gente idosa, que a nossa sociedade insiste em atirar para um canto, tem muito para aprender mas teria muito para ensinar. Que pena tanto desperdício de tanto saber, de tanta energia, de tanta história e de tanta humanidade. Tudo assim: a amarelecer em lares, em hospitais, em casas vazias, em bancos de jardim...