quarta-feira, novembro 23, 2005

CRIANÇAS ABUSADAS

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

(in BALADA DA NEVE, Augusto Gil)

E o repórter, Nick Ut, da Associated Press, estava lá!

Era o momento certo, dum dia completamente errado, para fotografar as crianças que fugiam, apavoradas, duma aldeia destruída com a cruel ajuda de Napalm.

Crianças que corriam, não sabiam muito bem para onde. Corriam. E Nick Ut, apropriando-se, de forma absolutamente nua e crua, do seu horror, foi à boleia da corrida delas e correu, ele próprio, para a fama dos prémios Pulitzer. Esta foi a foto da sua vida!
E as crianças felizes de todo o mundo, que foram à escola nesse dia, nem se aperceberam de que, a uma certa hora do dia, as suas pastas ficaram ligeiramente mais leves: foi quando se apagou, dos seus mapa-mundi, aquele pequeno pontinho preto que representava Trang Bang, lá longe, no Vietname. E algumas das que se aperceberam disso, por certo terão pensado: “que bom, menos matéria que sai para o teste, menos um nome de terras para decorar”. Há gente para tudo!
Mas há também aqueles que fazem suas as causas das crianças que não podem ter causas. Voltarei ao tema em breve para escrever sobre isso.

quinta-feira, novembro 17, 2005

COMPREENDER QUEM GRITA

Ninguém gosta que lhe falem aos gritos. Eu não gosto que me falem aos gritos.
Ok. Eu sei que às vezes também me passo. Mas, mesmo assim, não gosto que gritem comigo. Prontos, eu sou assim…
Procuro ter tolerância e compreensão para quem grita comigo. Ok, sei que nem sempre o consigo, mas tento. E para o conseguir preciso de me lembrar, a tempo, que quem grita com os outros, está, antes de tudo, a gritar consigo próprio, está a gritar contra a sua incapacidade de enfrentar algo que o incomoda. Não é comigo que grita.
Quem está bem consigo próprio encara os desaires da vida com um outro sustento que não é o que revela quando grita, quando dá murros na mesa, quando é desagradável com os outros...
Imagine-se uma reunião. Todos colaboram, dando o melhor de si mesmos. Mas eis que surgem opiniões divergentes e o director entra numa espiral de gritaria com alguns dos presentes. Restringe, proíbe, impõe, exige... Vai-se a harmonia do grupo. O director deixa de conseguir estabelecer a ponte entre as legítimas várias vontades dos outros. O director grita porque não sabe nem gerir nem enfrentar a desorganização interior do grupo. No fundo, também grita contra a sua incapacidade para lidar com o caos instalado.
O mesmo se passa com as pessoas que gritam. Gritam porque não conseguem organizar devidamente a desorganização que há dentro de si. A pessoa que grita funciona como se tivesse várias pessoas a discutir dentro dela: por fora é a imagem do seu caos interior.
Vem isto a propósito do que me aconteceu há uns dias. Fiz um telefonema a um ex-aluno, ao Carlos C., um daqueles alunos que ficaram amigos para a minha vida. Mas esperava-me uma valentíssima surpresa: do outro lado, alguém grita comigo, berra de forma absolutamente inimaginável. Foi mesmo incrível: eram gritos tão agudos que partiriam qualquer peça de Cristal da Bohémia.
Eu sabia que não estava a telefonar para ouvir aquilo. Mas, contudo, enchi-me de uma grande compaixão por aqueles gritos. Acendeu-se a tempo, em mim, uma luzinha de vela que me recomendou cuidado, lembrando: "grita quem é fraco; grita quem não confia nas suas próprias capacidades; grita quem tem medo do mundo e dos outros; quem grita, grita, antes de mais, por ajuda".
Pois bem: ali estava alguém que me mostrava tudo isso. Escutei-lhe os gritos, em silêncio. Controlei-me, repetindo: "quem grita, grita, antes de mais, por ajuda". E pensei, de forma urgente, para comigo: "Precisa de apoio. Como posso fazer-lhe chegar a minha ajuda? Que posso fazer eu para ajudar quem grita assim?". Só me ocorreu dizer: - "Parabéns, Carlos, a Marta deve ser linda!".
Pois foi: de dentro dos seus menos de 3 Kg, do alto do seu menos que meio metro, a Martinha, nascida no dia anterior, revelava um medo imenso de enfrentar o mundo: a luz do dia, os ruídos do hospital, o choro dos outros meninos, os passos das enfermeiras, as falas dos médicos, as mudanças das fraldas, a necessidade de respirar, a necessidade de comer, ....
A Martinha gritava, no meu telefone, implorando ajuda. Que mais poderia fazer eu para ajudá-la a ultrapassar os seus medos? Desligar depressa, para que ela pudesse voltar para um colo tranquilo de pai, mesmo que não perdoando àquele tipo, de voz grossa, que lhe viera estragar o dia.
Eu sei que fui um malvado para a Marta e que ela jamais me perdoará o susto da campainha do telefone. Mas vale sempre a pena tentar compreender os que gritam, mesmo que continuemos a ser mal vistos por eles...

Parabéns, Marta. Sê bem vinda a este mundo.

terça-feira, novembro 08, 2005

AFINAL HAVIA OUTRA !

Olá, Z.C.

Hoje aconteceu-lhe aquela cena de ouvir alguém que julgou ser um homem e que afinal era uma mulher…Rimos do caricato da situação e eu prometi-lhe dois ou três comentários extra. Aqui vão eles, sem que tenha de pagar mais por isso – estão incluídos no preço das propinas! Como vê, as minhas promoções são melhores do que as do Modelo e nem exigem talão!


Pois é, Z.C., sabe o que são estereótipos? Diz o meu dicionário: “opinião preconcebida e comum que se impõe aos membros de uma colectividade”. Admitamos como boa esta definição…

No seu caso, deduziu tratar-se de um homem porque a sua ideia preconcebida de homem/mulher assim o levou a fazer. Até disse uma coisa deste género: “parecia mesmo um homem, as mulheres não fazem aquilo”. Mas aquilo que você imaginou à luz dos seus estereótipos de homem/mulher levou-o a interpretar mal a realidade que lhe apareceu pela frente. Afinal havia outra (pessoa): era mesmo uma mulher, não era um homem!

Mas não fique traumatizado. Nem é caso para andar por aí cheio de medo de voltar a “trocar as coisas” (i.e., trocar mulher por homem) em momentos porventura ainda mais complicados! De facto, todos nós somos dominados, mais ou menos, por estereótipos… o que às vezes nos trama, criando situações muito complicadas mas recordadas com algum divertimento.
Olhe, há tempos, num quentíssimo dia de verão, numa esplanada à beira-mar, ofereceram-me um Irish Coffe: aceitei sem pensar muito bem no que estava a aceitar. Mas pouco depois o meu estereótipo de bebida de verão (bebida fresca, gelada, que mata a sede…) levou-me a um terrível engano: levei o copo à boca e bebi um grande gole, como se fosse de cerveja, e apanhei um terrível escaldão: aquela bebida estava a ferver!!! Malditos estereótipos...

Mas o seu caso pode indiciar outra coisa: a necessidade de um upgrade dos estereótipos que você emprega para homem e mulher, pois a realidade dos dias que correm parece ser muito diferente daquela que à primeira vista se vê. Correndo o risco de o Domingos Abecasis voltar cá para me dizer que “o copy/paste estraga a obra realizada pelo autor”, deixo aqui mais uma citação, de um polémico livro que anda por aí:

“(…) enfrentamos uma crise de vastas proporções na identidade masculina. Cada vez mais, os observadores do panorama contemporâneo – sociólogos, antropólogos e psicólogos que fazem estudos aprofundados – estão a descobrir as esmagadoras dimensões deste fenómeno, que afecta cada um de nós pessoalmente tanto quanto afecta a nossa sociedade como um todo. Porque é que hoje em dia há uma confusão tão grande em termos de sexos, pelo menos nos Estados Unidos e na Europa Ocidental? Parece ser cada vez mais difícil referirmo-nos a alguma coisa como tendo uma essência masculina ou feminina”.

Ou seja, aqui já se fala da essência das pessoas (elas próprias) e não do mero estereótipo (com que nós as observamos)!

Tenha pois cuidado, Z.C.: ele há por aí telefones que já não são de quem parecem ser!


domingo, novembro 06, 2005

Nº 3183

Eis-me, algures, neste lindíssimo lugar, com uma elegância e uma imponência verdadeiramente excepcionais. Trata-se duma Universidade, a de Évora, onde as salas de aulas se amontoam ao longo duns claustros fabulosos e as paredes são forradas com uns magníficos azulejos que lhes conferem uma distintíssima dignidade.
Eis-me, algures, a vaguear pelo pátio e pelos corredores deste edifício antiquíssimo, sentindo como minhas as palavras do escritor Virgílio Ferreira, que sobre Évora dizia: “Conheço os seus espectros, a vertigem das eras, (…), nas pedras cor do tempo ouço um atropelo de vozes seculares”. É mesmo isso que sinto ao vaguear por aqui… E emociona-me particularmente sentir, neste edifício, essa noção da antiguidade de Évora, pois foi neste edifício que o meu pai frequentou o liceu, nos anos 30 do século passado, e onde, curiosamente, teve o privilégio de ser aluno do mesmo Virgílio Ferreira!
Sinto história neste local e tento imaginar como seriam, nessa altura, as brincadeiras naquele recreio, como seriam as aulas dentro daquelas salas. Mas não consigo. As coisas mudam, escapando à nossa capacidade de entendimento: imaginam, hoje em dia, um liceu público só para rapazes? Que tédio…
Volto a mim. Evaporou-se o estatuto que tenho na minha escola: aqui, os que passam, sabem lá se sou engenheiro, sabem lá se sou professor… Na minha escola todos me (re)conhecem, mas aqui está-me reservado o estatuto que se dá à gente anónima. Isso é bom ou é mau? Nem uma coisa nem outra: é diferente. E a diferença sente-se sempre, mexe connosco, intimida-nos mas desafia-nos.
Algures, por ali, na sala 106, marco presença numa aula. Mas não estou de pé, como me habituei nos últimos tempos: agora estou sentado, eventualmente com uma expressão típica de aluno caloiro; não dou a aula: assisto a ela; não escrevo o sumário: assino a folha de presenças; não recebo ordenado: pago propinas; não tenho cartão de professor: tenho cartão de aluno – sou o nº 3183.
A aula avança e eu vou-me lembrando do que o meu filho Vasco me disse, quando soube que eu iria frequentar um programa de doutoramento na Universidade de Évora: “O quê, vais voltar a estudar? Agora é que te vais lembrar do que custa ser aluno…”. Cá estou para ver isso. Para já, vou sentindo como a cadeira onde me sento é insuportavelmente desconfortável; como custa manter a concentração e o interesse numa aula de 4 horas; como a sala é fria; como é embaraçoso olhar à volta e não ver caras conhecidas; como é estranho estar numa cidade que não é a nossa… E dou comigo a pensar que os meus alunos também devem ter destes e doutros problemas, sem que nós, professores, eventualmente os valorizemos da maneira devida. Nisso tens razão, Vasco!
Mas a minha filha Rita, quando soube que eu iria frequentar aquele programa de doutoramento, reagiu de forma completamente diferente: deu-me os parabéns e incentivou-me, lembrando-me o quanto “é bom estudar e aprender coisas novas”. E, quando a cadeira me fazia doer as costas, ou quando a concentração me falhava, ou quando o frio da sala se tornava mais intenso, ou quando eu pensava na cidade e nas caras estranhas que me rodeavam, eram as palavras dela que me vinham à memória: ao fim e ao cabo, tudo isso era um preço razoável a pagar para ter o privilégio de pertencer àquela elite de alunos doutorandos, para poder ter acesso a um curso de formação avançada tão interessante como este promete ser. E, também aqui, dei comigo a pensar em alguns dos meus alunos que, por vezes, parecem não perceber que é um verdadeiro privilégio ser-se aluno do ensino superior num país com falta de recursos e abundância de iletrados. E que esse privilégio deve ser retribuído com grande dedicação e esforço pessoal na realização dos cursos. Nisso tens razão, Rita!
E, tal como os meus alunos, também eu olho para a difícil missão que tenho pela frente: vários anos de um esforço imenso, diz, quem sabe, que é mesmo um esforço brutal. Ainda por cima com os filhos à perna (“Quando é que tens testes?”; “Já estudaste tudo?”; “Vai trabalhar” – ai, como eles se vingam do que eu lhes faço!). Ainda por cima com o embaraço de sentir que ambos têm razão: é difícil a condição de aluno, como diz o Vasco, mas é óptimo estudar, como diz a Rita!
E, para além de tudo isto, também a mim me assaltam as dúvidas: serei eu capaz de fazer este curso e ser pai e ser marido e ser filho e ser irmão e ser professor e ser amigo dos amigos e ter tempo para mim e ter tempo para os outros e…e … e…? Serei capaz de vencer este desafio conciliando-o com tudo o resto? Serei eu capaz?
É o momento certo para lembrar o que escrevi em posts anteriores: que “O Optimismo constrói-se” e que “O primeiro passo para obter uma determinada coisa é acreditar que vamos consegui-la”. Se serei capaz? Se é essa a opinião que dou aos outros, só posso achar que sim, não é? Conto comigo e com os outros: “a vitória é difícil mas é nossa”!

O OPTIMISMO CONSTRÓI-SE

"Ninguém nos pode explicar qual o sentido que a vida tem. Cada um, porém, poderá descobri-lo - ao assumir a sua própria faculdade para interpretar aquilo que lhe acontece. Os vários sinais que lhe vão sendo dados, através de acontecimentos exteriores ou apelos interiores.
Não podemos mudar as circunstâncias da vida. Mas podemos, sempre, mudar a forma como as encaramos. Libertar-nos de problemas sem solução à vista que nos abafam. De preocupações e ocupações que nos tiram a alegria de viver. (...)
O primeiro passo para obter uma determinada coisa é acreditar que vamos consegui-la. E acreditar não é uma capacidade que a uns seja dada enquanto a outros é negada. (...) "

(in "vamos falar de Amor?", de Mª José Costa Félix)

MEDOS INCONSCIENTES QUE NOS CONTROLAM

"Frequentemente somos controlados por medos de que nem temos consciência. E só tornando-nos conscientes deles poderemos ir tendo a coragem necessária para enfrentar os desafios da vida.
Alimentar pensamentos do tipo 'nunca vou conseguir aquilo que pretendo' ou 'gostava de ser capaz de fazer o que tu fazes, mas é impossível', sempre nos é prejudicial.
Ao nos baixar a auto-estima, diminui-nos as defesas.
E ficamos atreitos a encontrar pessoas que, estando mal com elas próprias e com o mundo, a ninguém nem a nada se entregam, por medo de perder o único poder que têm: o de controlar.
Tudo parte de uma atitude interior em relação à vida: acredito ou não que aquilo que me acontece tem uma razão de ser que transcende o meu desejo, a minha necessidade de controlar, de ficar por cima, de chegar primeiro, de cumprir, de ser competente, de vencer?
Se, para lá do que pensamos ou dizemos, no fundo de nós mesmos valorizamos mais o poder do que o amor, aquilo que preside a tudo o que fazemos é o medo. Basicamente o medo de falhar, de não corresponder às expectativas dos outros, e de nós próprios sobre o nosso desempenho, de perder, de ficar para trás, de não ser devidamente reconhecido."

(in "vamos falar de Amor?", de Mª José Costa Félix)